terça-feira, 22 de abril de 2008

Fichamento de Capítulo: O que é Direito.

Livro: Introdução ao Estudo do Direito
Autor: Alysson Leandro Mascaro.

obs.: Esse texto foi produzido singularmente pelo autor da postagem afim de condensar seu estudo individual sobre o tema. Trata-se de um resumo, com poucos acréscimos, do texto do prof. Alysson Mascaro. Como outros fichamentos, sua leitura pode ser útil para a introdução ou revisão do texto original, leitura bastante recomendável.

Capítulo I: O que é direito.

A palavra direito possui uma ampla gama semântica. Dentro de diversos exemplos pode-se discutir o que é ou não direito, mormente nos momentos em que esse fenômeno deve atender às questões da justiça.

Assim, roubar um pão por fome pode ser entendido como um ato contrário ao direito. No entanto, da mesma forma, também se pode entender contrário ao direito o fato de alguém não possuir um pão.

Afinal, o que é direito?

O direito como fenômeno histórico:

Para proceder à investigação dos fenômenos é necessário investigar o movimento real das coisas e não partir de idéias abstratas e, somente após tê-las claras, procurar uma realidade que se adapte a elas. Assim, deve-se usar da ferramenta da história para entender-se o fenômeno jurídico.

Nas sociedades passadas, anteriores à sociedade moderna, não há algo que se possa denominar, especificamente, de direito. Este aparece imbricado com outros complexos como a religião e a moral. Assim, com a chegada da modernidade processou-se a separação teórica e prática entre direito, política, religião, etc. A sociedade tornou-se mais complexa, portanto, diminuindo seus momentos de homogeneidade. É a partir dos tempos modernos, devido a certas estruturações sociais, como a própria organização capitalista, que se dá especificidade à religião, à moral, ao direito, etc.

A qualidade do direito:

É preciso compreender o direito a partir das coisas que são quantitativamente jurídicas e daquelas que são qualitativamente jurídicas. A qualidade de direito é que identifica determinado fenômeno enquanto tal.

Não é pelo assunto que o direito se identifica, são os mecanismos e estruturas que dão especificidade ao direito perante qualquer tema que precisamos entender para elucidar essas questões. É uma determinada relação específica, um modus operandi próprio, que identifica o direito, através do qual ele chega a temas que podem ser qualificados como jurídicos.

Como no passado diversos fenômenos sociais possuíam a mesma estrutura eles não guardavam uma reconhecida especificidade entre si. Assim, o que era jurídico poderia, ao mesmo tempo, ser religioso. A especificidade dos fenômenos surge a partir de determinadas relações sociais e econômicas advindas com a objetivação do capitalismo.

Nos modos de produção anteriores o direito se dava de forma similar a uma espécie de artesanato. Variadas pessoas, segundo critérios de poder, autoridade, força, liderança, forjavam soluções para casos quaisquer que não se repetiam em casos semelhantes. No capitalismo, porém, a mercantilização das relações sociais dá margem a um direito eminentemente técnico, independente da vontade ocasional das partes.

Essa instância jurídica, que adquire sua especificidade, é o locus no qual o Estado se institucionaliza. Esse, um ente aparentemente distante dos indivíduos, regula uma pluralidade de comportamentos, atos e relações sociais. Tomando formas tão peculiares o direito capitalista torna irreconhecíveis as formas jurídicas não-capitalistas.

No capitalismo a sociedade, cindida em classes, inaugura uma nova prática concreta de exploração. O trabalho assalariado, que produz mercadorias, que, por sua vez, geram lucro ao serem vendidas. Dessa forma, as mercadorias existem por que os homens contratam. Daí que o berço do direito encontra-se nas transações mercantis. Ele é resultado delas, posto que é criado, justamente, para garanti-las.

Forma jurídica e forma mercantil:

Eugênio Pachukanis, em tese manifestamente marxista, identificou a forma jurídica à forma mercantil. Quis ele colocar que sempre que surja uma economia de circulação mercantil uma série de ferramentas jurídicas precisa ser criada para apoiá-la como seu reflexo.

Assim, é necessária que existam a liberdade de contratar, os sujeitos de direito, os respectivos direitos e deveres. E é necessário, também, que um terceiro execute os contratos não cumpridos. Esse terceiro é o Estado.

No capitalismo é necessário um regime de impessoalidade para a produção e a circulação de riquezas. Ele explora o trabalho de quem quer que seja, assim como a mercadoria é vendida para qualquer que a compre. Isso dá margem a uma determinada tecnicidade, reflexo necessário da impessoalidade, que se alastra por todas as relações capitalistas. A troca mercantil é universal e, portanto, uma certa técnica que lhe dá apoio universaliza-se também: o direito. Nascendo as atividades mercantis capitalistas nascem juntas as instituições jurídicas. Assim, por exemplo, o trabalho é explorado através da compra e venda da força de trabalho por via de um contrato.

O direito subjetivo, a autonomia da vontade e tantos outros conceitos técnicos do direito surgem dessas relações capitalistas. Assim, no capitalismo todos são iguais para se venderem ao mercado. Todos são iguais para explorarem ou serem explorados na grande engrenagem do capital.

Desta forma, pode-se dizer que o direito moderno é capitalista não porque todas as suas normas sejam favoráveis à exploração capitalista e a protejam. Podem, inclusive, haver leis que atrapalhem a dinâmica capitalista. Porém, o direito moderno é capitalista porque a forma dele equivale-se à forma capitalista mercantil.

Não é o conteúdo das normas que garante o capitalismo. É a forma jurídica que permite que se estruturem todas as relações capitalistas. Normas e atitudes específicas dos juristas podem ir de encontro ao capital. A estrutura do direito, criada pela estrutura do capitalismo mercantil que passa a possibilitar as próprias relações do capital, não.

Se, no mundo pré-capitalista, o jurista confundia-se com um artesão, por causa da ausência de uma técnica impessoal e universalizada, que correspondesse a uma atividade mercantil impessoal e universalizada, no mundo do capital cai por terra a indistinção entre arte e técnica. O direito é, agora, mecânico em consonância com a mecanicidade das relações capitalistas. Agora serão jurídicas as normas e os procedimentos que, imparciais e mecânicos, servem de sustentáculo ao modus operandi do capital.

É por essa razão que se pode afirmar que o fenômeno jurídico passa por um salto qualitativo no capitalismo. Ele é requalificado. Não se chega aos fatos através dos próprios fatos ou da arte da justeza do jurista. É através da técnica jurídica, das normas em última instância, que se chegará às coisas.

Assim, a especificidade do fenômeno jurídico será identificada por este conjunto de instâncias estatais que correspondem de forma imediata às relações mercantis capitalistas. Só a sociedade moderna, capitalista, dá ao direito sua especificidade, sua própria forma. E a razão dessa forma específica é a forma mercantil que lhe corresponde e dá origem.

A quantidade extensiva do direito:

É necessária a percepção de que não é certa temática a residência da identificação do direito. Isso demonstra que a especificidade desse fenômeno encontra-se em sua qualidade, não em sua quantidade. É a qualificação do assunto que pode demonstrá-lo enquanto jurídico. Não é o tema, portanto, que faz o direito, mas a qualificação levada a este tema, imposta com base nas relações sociais vigentes.

O direito regulará as necessidades mais importantes do capitalismo. Não por acaso os primeiros códigos modernos que surgiram foram os que diretamente apoiavam as relações mercantis. O Código Civil e o Código Penal. O direito se estenderá, no entanto, por diversos outros temas que não são diretamente ligados ao capitalismo, sendo indiretamente nascentes desse, como as normas de trânsito, por exemplo.

Isso não quer dizer que o direito não é necessariamente ligado ao capitalismo. Na verdade, as normas de trânsito se valerão da mesma lógica e dos mesmos conceitos de que se valem as relações mercantis. O capitalismo transforma a tudo em mercadoria, o que vai fazer com que o direito alcance, também, todas essas relações. O direito chegará sempre aonde chegue a mercadoria.

Portanto, não haverá a coexistência de fontes contrárias do direito. Todo o fenômeno jurídico emerge das relações mercantis. E a reificação, a universalização da forma mercantil, conceito de G. Lukács, universaliza, então, a forma jurídica, que a tudo isso chancelará e aprovará.

Vale lembrar que o direito opera onde fala e onde se omite. Os juristas técnicos dirão que os fatos não valorados pelo direito não têm relevância jurídica. Mas a omissão do direito é um alto problema jurídico. O direito se esparrama sobre tudo, mesmo quando se esconde e omite.

Assim, não é pela quantidade, nem pelo assunto, que se identifica o direito. É por sua qualidade correlata à forma mercantil. Desta forma, é vasto o limite da incidência das normas jurídicas nos fenômenos sociais humanos, abarcando tudo aquilo que possa ser mercadoria.

A quantidade formadora do direito:

O direito penetra e é penetrado pela totalidade, interpenetrando todos os demais fenômenos sociais e sendo interpenetrado por eles. Por isso, não só a quantidade de que trata o direito, mas também quantidade que forma o direito é resumida pela totalidade. No limite, o fenômeno jurídico é apenas mais uma forma de expressão da totalidade dos fenômenos sociais.

Claro está, no entanto, que a totalidade das coisas forma o direito apenas em seu nível quantitativo, ficando de fora o nível qualitativo. A qualidade jurídica é o fenômeno preponderante, a quantidade é fato suplementar. Assim, a religião influencia o direito, mas não é seu fundamento. Sua lógica advém da atividade mercantil como estrutura necessária e aderente ao capital.

O jurista eminentemente técnico se esforça por esconder essa interação com a totalidade do direito. Identifica o direito apenas com a norma jurídica, procedendo, assim, a verdadeiro reducionismo. Escondem-se as relações do direito com a sociedade para não explicitarem-se seus vínculos. Deve-se proceder de modo contrário, rompendo com o reducionismo para chegar à própria qualificação da totalidade. A partir desse todo é que se há de identificar o capitalismo como unificador de sentido ao direito com todos os outros fenômenos mais a ele se somando de forma complementar.

Disso deriva a atual formação dos juristas. Parte a entender o direito a partir de certos pontos apenas, como a norma jurídica, desconhecendo a totalidade. Não se dando conta da riqueza da totalidade o jurista atual passa a se contentar em observar apenas fatos parciais, chamando-os de direito. Para um mundo que não quer ter angústias, sem se transformar, essa postura é útil, pois não pensa as contradições do todo. Mas para conhecer a plenitude do direito, é preciso ampliar os horizontes teóricos.

Frente a isso é necessário lembrar que a totalidade sobre a qual o direito se esparrama, e que forma o fenômeno jurídico, é orientada por essa razão de ser qualitativa, que se desdobra e volta a implicar o todo. O capitalismo dá existência singular ao direito e, ao mesmo tempo, o direito dá sustentação à atividade mercantil capitalista.

O fenômeno jurídico:

Não há fenômeno jurídico fora da história. Tudo que foi considerado manifestação jurídica foi assim considerado de forma distinta ao variar da história. Contemporaneamente, o direito é a técnica jurídica moderna.

Aristóteles, em Ética a Nicômaco, identifica o campo do direito e da justiça com a regra de dar a cada um o que é seu. Essa ficou conhecida como a regra de ouro aristotélica, que perpassou o Direito Romano e a Idade Média. O direito identificava-se à distribuição de bens.

No capitalismo essa lógica se inverte. A regra de Aristóteles deixa de ser lida como um problema de distribuição dos bens, sendo vista, a partir de agora, enquanto uma norma. Assim, independentemente de seu conteúdo ou procedimento, a regra perde seu sentido para uma norma que encerra, nela mesma, o sentido para justiça.

Antes o direito não estava nas normas, mas nas coisas. Anteriormente à Idade Moderna a justiça era uma atividade de encontrar a natureza das coisas. O jurista deveria agir no sentido de conformar os bens, as pessoas, os fatos e as situações a essa natureza. Daí surgiria o justo.

Assim, para Aristóteles, a eqüidade, que busca a justiça em cada caso concreto, era mais importante que a lei. Na antiguidade o jurista teria de ser capaz de buscar na situação concreta, nas coisas, sua natureza e a justiça ali envolvida. O fenômeno jurídico era considerado muito maior que a sua mera normatividade.

No capitalismo, contrariamente, o direito identifica-se às normas estatais e a todos os seus fenômenos teóricos correlatos. Fato devido às necessidades prementes da exploração mercantil e produtiva do capital. Se a sabedoria era uma virtude jurídica no passado, hoje a virtude jurídica que se busca é o conhecimento técnico. Para nós o direito é técnica e não arte.

O artesanato jurídico do passado parece injusto visto com os olhos do presente e, de fato, o é. Nas sociedades pré-capitalistas os que detinham o poder nas relações sociais acabavam, na maioria dos casos, consolidando a ordem injusta em que viviam, porém tudo a depender da vontade de quem mandava. O direito era incerto, imprevisível. O capitalismo, no entanto, por meio da institucionalização estatal, apenas tornou previsíveis e consolidadas suas injustiças. Por isso, a crítica ao capitalismo não é uma volta ao passado, mas a sua superação, a chegada a uma sociedade sem classes e sem exploração. A chegada ao Socialismo. Pois somente com esta superação será possível chegar-se às pessoas, às coisas, aos fatos.

O direito como fenômeno específico é necessário ao capitalismo. A superação deste será a superação do mundo tecnicista dos juristas. O fim do direito específico é o fim do próprio capitalismo. Por isso, a crítica marxista de que a extinção do capitalismo será a extinção do direito.

Portanto, a arte do jurista de fazer justiça é praticamente impedida sob o capitalismo. O jurista deve ser mecânico, técnico. Suas aspirações e seus desejos são enterrados pela prática sufocante da realidade e pela distorção estrutural da sociedade. Por isso, a postura autêntica do jurista deve ser a da transformação da própria sociedade capitalista. Assim, ele só será autêntico quando vivermos no mundo socialista e o direito for uma arte ou quando ele lutar pela destruição da sociedade capitalista.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Fichamento de Capítulo: O Estranhamento

Livro: A Ontologia de Lukács
Autor: Sérgio Lessa



Obs.: Este fichamento foi produzido com o objetivo de condensar a discussão do grupo acerca do capítulo do livro. Desdobra-se, em parte, como um comentário do texto original, sendo, porém, predominantemente um resumo. Sua leitura pode auxiliar na identificação das passagens mais importantes do capítulo o que a torna interessante como introdução ou revisão do texto original cuja leitura é altamente recomendável.
O Estranhamento
O fenômeno da alienação, momento no qual o objeto objetivado torna-se inconfundível com a consciência que o idealizou previamente, constitui o momento positivo pelo qual o homem constrói o ser social. Alienando-se constrói um ambiente cada vez mais social, através desta capacidade prática que possui de modificar o real.
Nem todas as objetivações jogam, no entanto, um papel positivo no desenvolvimento da generalidade humana. Algumas delas revelam-se como obstáculos, em determinados momentos históricos, para o desenvolvimento da humanidade, tornando-se negação desta, expressão da desumanidade criada pelo próprio homem. Estes obstáculos sócio-genéricos ao devir-humano dos homens constituem o fenômeno do estranhamento. Como pode-se notar o estranhamento é, em origem, uma espécie de alienação. É, porém, uma objetivação humana que volta-se contra a própria humanidade, ainda que, sem exceção, decorra de um processo de alienação.
Esta negação da humanidade não representa, porém, um retorno às esferas ontológicas inferiores. Todo estranhamento é puramente social, ainda que represente uma negação das potencialidades humanas. Em decorrência disto, o caráter social puro da sociabilidade burguesa permitiu níveis de estranhamento inéditos na história. Ao fazer referência ao caráter socialmente puro da era burguesa não se quer, com isto, afirmar-se que as sociedades pré-capitalistas teriam qualquer traço da esfera ontológica natural, mas que, na sociedade capitalista, o lugar ocupado pelos indivíduos depende, exclusivamente, da dinâmica econômica. Diversamente do feudalismo, o nascimento não pode, por exemplo, definir qual posição social deverá ocupar o indivíduo.
Importante ressaltar, no entanto, que o significado dado a determinado fenômeno da natureza, como o nascimento, é puramente social. No tráfico social cotidiano, porém, ele assumirá a dureza de uma segunda natureza em decorrência do fato de não poder ser alterado por um simples ato de vontade. As relações sociais assumem, portanto, uma exterioridade cotidiana em confronto com as consciências individuais que as dá relativa autonomia, assemelhando-as à realidade natural. Isto, no entanto, não pode ser interpretado como um retorno à esfera biológica após o salto ontológico. O fenômeno ora examinado diz respeito à objetivação das relações sociais, sua alienação em relação ao indivíduo e os nexos causais imprevisíveis, pela consciência que as objetivou, desencadeados neste processo. É neste contexto que as relações sócio-genéricas ganham uma relativa autonomia frente às vontades individuais. A distância entre a objetividade social e a subjetividade que a funda faz com que as relações sociais exibam esta dureza semelhante à da natureza.
Na sociedade capitalista, no entanto, esta aparência natural das relações sociais tende a desaparecer. Se, por um lado, o papel dos indivíduos é modificável por suas ações, de outro, é inegável que esta condição encontra-se, na sociabilidade burguesa, nas consciências individuais que os atos de cada um têm importância para seus destinos. O desenvolvimento desta consciência assumiu a forma de um conflito entre indivíduo e gênero. Faz, assim, com que o indivíduo não veja no outro uma expressão da generalidade humana, mas sim uma oportunidade ou obstáculo para o acúmulo de capital. Os indivíduos construir-se-iam em confronto como a ordem social global, criada por suas subjetividades egoístas e competitivas, desumana e concorrencial. Esta é a essência do individualismo burguês.
As relações sociais movidas pela reprodução do capital sintetizam-se formando a totalidade social burguesa. O capital passa a dominar o mundo dos homens, fazendo com que as decisões atendam às necessidades de sua reprodução e não às da reprodução da generalidade humana. O capital passa a ser a razão do agir humano. É uma criação humana que escraviza os homens: um estranhamento. Por suas dimensões universais é um estranhamento que, para ser superado, necessita da superação da sociabilidade burguesa em-si. Isto possibilitaria, então, a explicitação da generalidade humana.
O processo que leva à fundação da totalidade social burguesa, e que leva o homem para o centro da história, é um passo fundamental na elevação da humanidade ao seu ser para-si. Assim como, de modo análogo, o desenvolvimento mercantil permitiu, possibilitou objetivamente, o desenvolvimento do individualismo burguês. A partir deste nexo surgem diversos dos desdobramentos da vida burguesa. A democracia burguesa, por exemplo, é expressão política deste individualismo e da totalidade social enquanto lócus da disputa entre os indivíduos. É, em suma, uma forma de organização política que pretende evitar a dissolução da sociedade sem, contudo, ultrapassar os limites do capital, ao regular os conflitos sociais.
Na sociedade burguesa a individualidade não pode superar a fragmentação entre sua dimensão genérica, o citoyen, e sua dimensão particular, o burgeois. Esta cisão é o fundamento para o comportamento do burguês típico para com as formas de normatividade sociais. O público e o privado não são apenas distintos, mas antagônicos, fazendo com que as relações genéricas sejam tomadas enquanto instrumento da acumulação privada de riqueza. Assim, o burguês deseja que as leis, a moral, a ética, sejam respeitadas, porém transgride-as na busca de vantagens pessoais. Esta cisão demonstra, também, como o estranhamento é um obstáculo à explicitação da generalidade humana.
O estranhamento, contudo, não é fenômeno existente apenas na sociedade capitalista. Assim a superação dos estranhamentos do capital não significaria o fim de todos os estranhamentos, mas o surgimento de novos, que, por sua vez, teriam também de serem superados. A superação do capitalismo não significaria, assim, o fim da história. [Em discussão o grupo não chegou um consenso quanto a isto. O estranhamento não seria o único impulso à história humana, seu desaparecimento não significaria o fim da história. Porém é inegável o fato de que o capital não é a única fonte de estranhamentos.]
A questão da Liberdade:
A liberdade seria a possibilidade de escolher, entre alternativas postas pela realidade, aquela que mais adequada ao devir-humano dos homens. Ela não seria, portanto, o livramento das leis naturais, mas a capacidade de decidir como se relacionar com estas leis. Fenômeno puramente social, a liberdade opera na relação teleologia-causalidade que caracteriza os atos humanos. Além disto ela tem seu momento fundante na transformação do real pelo trabalho, por dizer respeito à relação do ser humano com o mundo em que vive. Consubstanciada em decisões alternativas que são respostas a situações concretas ela não existe nos estados de consciência que não se relacionam com a transformação da realidade. Estes não têm qualquer traço de liberdade, posto que esta não existe fora da práxis.
Para Engels, a liberdade resume-se à capacidade de agir com conhecimento de causa. Lukács admite a corretude desta afirmação, principalmente do que diz respeito à superação do dualismo necessidade/liberdade. Como se disse antes, a liberdade não seria a fuga das necessidades naturais, porém a capacidade de decidir alternativamente como se comportar frente a elas. O conceito de Engels, é, no entanto, limitado à forma primária de liberdade, aquela que se dá no ato do trabalho. Todo ato singular tornado relativamente autônomo cria uma forma peculiar de liberdade. Lukács afirma que o fenômeno da liberdade é um dos mais multiformes da esfera social, não podendo se derivar as suas formas mais complexas a partir das formas mais simples através de um processo de dedução. Nesta linha, por exemplo, a liberdade jurídica seria diferente da liberdade política.
Além disto, o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo fez surgir um fenômeno não previsto por Engels. Ele acreditava que o desdobramento da ciência daria margem a uma explicação cada vez mais fiel da realidade. Lukács, no entanto, acompanhou, ao longo do século XX, o surgimento de um comportamento exatamente contrário à previsão engeliana. A ciência, sob o capitalismo, ao ser limitada em suas aspirações imediatamente práticas acaba por, em certa medida, maquiar a realidade, contribuindo para, ao invés da construção de um conhecimento cada vez mais confiável, o surgimento de ontologias fictícias. Para Lukács, será o objetivo do conhecimento aquilo o que deve ser analisado. Esse objetivo fornece o critério real, do mesmo modo que o critério deve ser buscado na relação com a própria realidade. Esta nova situação traz modificações importantes entre meios e fins, sendo “qualitativamente diferente que a alternativa tenha como seu conteúdo somente um juízo de corretude ou erroneidade determináveis em termos puramente gnosiológicos ou, mesmo, que a posição do fim seja o resultado de alternativas cuja origem é humano-social”[1]. O fim pode, portanto, ser determinado por critérios outros que o puro conhecimento de causa, não podendo ser reduzida sua posição a critérios do trabalho simples. Deve ter por referencial e horizonte o devir-humano, o processo de sociabilização. Seu critério de valoração deve ser extraído do processo de construção da generalidade humana para-si, tendo na ética seu campo resolutivo.
A sociabilidade burguesa, socialmente pura, traz alterações na relação entre os momentos de prévia-ideação e objetivação na constituição de uma generalidade humana para-si. Contemporaneamente esse processo porta a necessidade de gerar um ser social que supere os estranhamentos predominantes na sociabilidade atual. Isso requer a opção, em escala social, por valores que expressem o predomínio do humano no processo de alienação fazendo com que as necessidades humano-genéricas predominem sobre as desumanidades socialmente postas.
Assim:
“...os valores que devem operar na síntese da generalidade humana para-si são aqueles que superam a forma cindida de ser do mundo sob o capital, apontando para a constituição de um ser social no qual a crescente afirmação do gênero, em patamares socialmente cada vez mais elevados, requer a plena explicitação das particularidades e das capacidades individuais. Particularidades, agora, que são compreendidas e se constituem enquanto aquilo que de fato são: particularidades de um gênero cujo modo de ser apenas pode se desenvolver dando espaço para o desenvolvimento de sua heterogeneidade interna”. (LESSA, Sérgio op. cit. p. 130)
A efetivação prática destas relações é, então, o Comunismo. E, por fim, os valores que correspondem às prévias-ideações que superam o capital são os valores éticos.
A questão da ética:
O direito e a moral, mais explicitamente, e também os costumes e a tradição, afirmam, frente às aspirações particulares dos indivíduos, a sua sociabilidade, seu pertencer ao gênero humano que surge no curso do desenvolvimento social. A base destes fenômenos é a contradição entre a particularidade e a generalidade, no tocante às decisões alternativas e suas necessárias conexões com a totalidade.
Na ética, porém, este dualismo é superado. A individualidade passa a entender a generalidade não como antinômica a si, mas eleva à esta generalidade o horizonte das finalidades de suas decisões alternativas. O indivíduo passa a ser uma individualidade autêntica, genérica, consciente de que é membro do gênero humano. As decisões do indivíduo passam a ter como fim a elevação do gênero a patamares mais altos de sociabilidade. Tornam-se individualidades de um gênero elevado ao ser-para-si.
A indvidualidade existe, apenas, no todo social. Não se contrapõe à sociabilidade, mas, antes, é necessária sua interação com a totalidade. Neste quadro, a ética configura-se como representação desta necessidade em seu patamar mais elevado.
Desta forma, os valores possuem um notável peso ontológico neste jogo. Assim, uma vez que o desenvolvimento sócio-global tenha aberto a possibilidade da elevação do gênero ao seu para-si, a concretização desta possibilidade depende de decisões alternativas que recebem impulsos decisivos dos valores genéricos. Esta escolha por valores genéricos que influenciariam na decisão alternativa, não pode ser tomada sem o “desenvolvimento social no seu desdobramento real” ter aberto esta “possibilidade objetiva”. No entanto, entre esta possibilidade e sua objetivação concreta media o ato teleológico de indivíduos concretos. Ou seja, a mera possibilidade objetiva não iguala-se a objetivação concreta baseada nestes valores éticos, sendo ineliminável a necessidade de atos concretos teleologicamente postos para sua concreção.
As considerações de Lukács sobre a ética em sua Ontologia são apenas de cunho introdutório. Seu objetivo filosófico era o de que a Ontologia fosse um prelúdio de sua obra Ética. Porém, a morte não permitiu ao filósofo húngaro a concretização deste projeto. Por isto mesmo, as considerações acerca da ética são escassas e apenas abrem um campo de debate inteiro a ser explorado pelo marxismo.

[1] LUKÁCS, George apud LESSA, Sérgio. A Ontologia de Lukács. p. 127

Fichamento de Capítulo: Reprodução Social

Livro: A Ontologia de Lukács
Autor: Sérgio Lessa

Obs.: Este fichamento foi produzido com o objetivo de condensar a discussão do grupo acerca do capítulo do livro. Desdobra-se, em parte, como um comentário do texto original, sendo, porém, predominantemente um resumo. Sua leitura pode auxiliar na identificação das passagens mais importantes do capítulo o que a torna interessante como introdução ou revisão do texto original cuja leitura é altamente recomendável.

Reprodução Social
O que distingue, ontologicamente, a esfera biológica, da esfera social é o fato de que o momento predominante desta, qual seja, a reprodução do novo, tem por médium necessário, a consciência. Esta permite ao ser social o reconhecimento de sua própria história e a sua elevação ao seu ser-para-si.
A consciência joga, assim, papel fundamental na construção da realidade social. A maior ou menor consciência, por parte do ser social, do seu em-si, modifica qualitativamente o seu agir. Assim, o papel da categoria da subjetividade inicia-se, para a formação do mundo humano, a partir da prévia-ideação indispensável ao trabalho. Contudo, esta não é de longe, sua participação final na construção da totalidade social. A sua atuação continua na constante e necessária distinção entre indivíduo e generalidade.
A esfera biológica pauta sua interação com o ambiente a partir de respostas estreitamente limitadas pelas barreiras naturais. Assim, estas respostas dadas ao ambiente serão qualitativamente diferentes a partir do momento em que os condicionamentos naturais sejam, em mesma medida, distintos. Ou seja, a maneira como uma ameba interage com o ambiente a sua volta é, sem dúvidas, várias vezes mais estreita em relação à maneira como um chimpanzé reage à realidade em seu entorno. A razão para isto deve-se à radical diferença de cargas genéticas entre os dois seres citados.
A esfera social, no entanto, é capaz de reproduzir seres sociais que, independente da carga genética ser, em suas bases, a mesma em períodos históricos diferentes, as respostas dadas ao ambiente são tão mais diferentes quanto mais elevada for a forma de sociabilidade em que se encontrem suas consciências. A base natural para sociabilidades mais ou menos avançadas é a mesma. O que modifica é o maior ou menor afastamento das barreiras naturais que a forma de sociabilidade em questão conseguiu atingir. O devir-humano dos homens é, então, para Lukács, puramente social.
A outra diferença radical entre as duas esferas ontológicas põe-se no campo da constituição da distinção entre indivíduo e gênero. Ora, é sabido que, na esfera biológica há uma necessária diferenciação entre a história do indivíduo e a história do gênero. A morte do indivíduo não significará, por exemplo, a morte do gênero. Na esfera social a distinção se dá de forma análoga, porém com um salto qualitativo. O ser social é capaz de, elevando à sua consciência o fato de que sua história não se confunde com a história da totalidade social, perceber a distinção entre o particular e o genérico e, inclusive, optar por alternativas práticas que podem afastar ou aproximar a generalidade humana e a individualidade.
A elevação da sociabilidade necessariamente dará base a relações sociais mais complexas. Com isso é ineliminável deste processo a reflexa complexificação e articulação das individualidades. Esta segunda processualidade é, por si só, necessidade e conseqüência da primeira. Não existe, como se pode ver, o desenvolvimento do indivíduo fora do desenvolvimento do gênero. A consciência joga, neste momento, um papel fundamental na mediação entre indivíduo e gênero, sendo o nexo ontológico entre a complexificação da sociabilidade e a complexificação das individualidades. É ela o órgão e o médium da continuidade do processo de acumulação que constitui o devir-humano dos homens. Com isto, a medida em que há uma evolução da consciência genérico-humana, através da elevação de níveis de sociabilidade, há, também e reflexivamente, uma elevação da auto-consciência das individualidades. Permite-se assim o lançamento de bases objetivas e subjetivas para uma distinção entre a reprodução da individualidade e a reprodução do gênero humano cada vez mais visível. São, portanto, pólos de um mesmo processo a generalidade humana e a individualidade, intrinsecamente articuladas no que Lukács denomina de reprodução social.
Seguindo este raciocínio, chega-se ao questionamento de como se dá a reprodução de cada um desses pólos. Quais seriam, portanto, os nexos ontológicos que dariam início aos processos de socialização e individuação?
Para se reproduzirem, tanto enquanto indivíduos quanto gênero, os homens precisam modificar a realidade através de atos teleologicamente postos. Ao fazê-lo os seres humanos reproduzem a totalidade social e as particularidades que compõem o seu mundo. A substância social é a síntese dos atos singulares em totalidade social e em individualidades. Assim, a questão central a ser respondida é qual a processualidade da construção das individualidades e da totalidade social.
O fundamento ontológico da síntese que funda a totalidade social é o impulso generalizante da categoria do trabalho. Por meio deste impulso é articulado cada ato singular através do fluxo da práxis social. Esta generalização inerente ao trabalho, nódulo mais fundamental do mundo humano, é, assim, o elemento primário da síntese que constitui a totalidade social.
O segundo nexo que opera na síntese que funda a totalidade social é decorrência do anterior: é a contraditoriedade necessária entre elementos genéricos e particulares. Pelo trabalho a singularidade da situação concreta será generalizada em duas instâncias. Tanto quando é confrontada ao passado e ao futuro generalizando-se de forma subjetiva, quanto no momento em que se objetiva por todo ser social, de forma objetiva, quando é objetivada em produto do trabalho. Nota-se a articulação determinantemente reflexiva entre a singularidade e a universalidade no núcleo fundamental da reprodução social. Esta conexão reflexiva desdobra-se em outros níveis de contraditoriedade em proporção ao seu desenvolvimento. Assim, chega-se ao nível em que a processualidade social global, em seu movimento cotidiano põe o gênero humano frente a alternativas que o forçam a escolher entre as necessidades, interesses e valores genéricos, e as necessidades, interesses e valores particulares. Nas sociedades de classe, normalmente, essas opções se colocam no predomínio do interesse de uma classe sobre a totalidade.
Esta tensão entre genérico e particular é o fundamento ontológico, para Lukács, dos conflitos sociais. Sem a contradição entre os interesses particulares e os genéricos, que se dá por via da complexificação da contraditoriedade, como distinção, entre singularidade e universalidade inerente à categoria do trabalho não poderia haver conflitos sociais. Esta tensão é, também, o fundamento ontológico para que a humanidade eleve-se a níveis mais conscientes da contradição entre particular e genérico e desta sua contraposição específica. O conflito entre singularidade e universalidade é fundamental para a apreensão pela consciência da distinção entre individualidade e totalidade. Assim, a contradição entre indivíduo e gênero é fundamental para a percepção consciente pelos homens, do seu próprio ser genérico.
Esta contradição faz surgir a necessidade da identificação histórica de valores e interesses genéricos plasmados na totalidade social de forma visível para que sejam operacionais na processualidade social. São valores fundamentais em escala social à separação entre particular e universal, que, por sua vez, influencia decisivamente na identificação mais precisa dos interesses genéricos. Desta necessidade retira-se o fundamento ontológico para o direito, a moral, a tradição os costumes, a ética. Apesar de suas diferenças surgem todos para tornar mais visível aos homens a escolha, cada vez mais nítida, entre valores genéricos e particulares. Estas mediações necessárias ao cotidiano social constituem, desta forma, o terceiro nexo que opera na síntese que constitui o gênero enquanto totalidade social.
A ética, no entanto, possui uma diferença fundamental às outras mediações citadas. Sua atuação, no interior dos conflitos sociais, não visa, apenas, o seu controle em níveis de tolerância mínimos. Sua complexidade própria visa, na verdade, a superação da distinção entre necessidades, valores e interesses particulares e genéricos. Assim, ela exerce função distinta na sociabilidade burguesa. Esta, única sociabilidade puramente social, permite aos homens se reconhecerem como construtores da história, fundando uma nova necessidade ao colocar gênero e indivíduo como uma cisão presente na consciência. A necessidade da superação desta dicotomia, que só se dará com a construção de complexos sociais que a tornem cada vez mais visível e com atos teleologicamente postos com predominância de interesses genéricos. O gênero precisa, então, compreender o seu em-si, o que implica numa maior compreensão pelas individualidades de que elas são de caráter ineliminavelmente genérico. A elevação do gênero ao seu para-si se dará concomitante à elevação das individualidades ao seu caráter de individualidades autênticas, ou seja, genéricas. A elevação das individualidades cada vez mais complexas e articuladas é requerimento e possibilidade do processo que dá origem a formas de sociabilidade cada vez mais desenvolvidas.
Falta, contudo, a análise dos nexos que constituem a processualidade da formação das individualidades. Como veremos, os três nexos acima estão também presentes neste momento específico da reprodução social.
O primeiro nexo da individuação é, portanto, o impulso à generalização da categoria do trabalho. Assim, o desenvolvimento de formas de sociabilidade cada vez mais evoluídas é o fundamento ontológico da constituição de individualidades cada vez mais complexas ao longo da história. O movimento da totalidade do ser social é o momento predominante na elevação da singularidade humana em individualidade autêntica.
O segundo nexo parte da tensão entre genérico e particular. A vida cotidiana põe o indivíduo frente a situações que, graças a esta ineliminável tensão o forçam a escolher um ou outro valor, possibilitando ao indivíduo a consciência desta contradição, posta pelo fluxo da práxis social, entre a reprodução da individualidade e a reprodução da totalidade social. Isto impulsiona os seres à constituição do para-si de sua individualidade.
O terceiro nexo é composto pelos complexos sociais que permitem ao indivíduo assumir como seus os interesses sócio-genéricos. Aqui a ética joga um papel fundamental no processo de superação da contradição antinômica gênero/individualidade constituindo a autêntica individualidade social, a individualidade para-si.
Não há, portanto, individualidade fora da totalidade social, da mesma forma que não há ato singular senão no interior desta mesma. Ao mesmo tempo, a totalidade social são os atos singulares concretos em situações concretas. O elemento constitutivo da totalidade social é a síntese das individualidades. Por isto mesmo, sem individuação não há sociabilidade possível. Pois, enquanto constroem a si próprios os indivíduos constroem a totalidade, fazendo com que a individualidade e a sociabilidade só existam na medida em que se contraponham reflexivamente como pólos de um mesmo processo: a reprodução social.
Por fim, é de suma importância o alerta de que os três nexos que operam tanto na individuação, quanto da sociabilidade possuem raiz ontológica no trabalho. Além disto Lukács demonstra, assim como Marx, o papel central da consciência, da subjetividade, desde o trabalho até a mediação entre individuação e sociabilidade. Sem a subjetividade não seria, portanto, possível a reprodução social.

Fichamento de capítulo: Trabalho e Gênese do Ser Social

Livro: A Ontologia de Lukács
Autor: Sérgio Lessa

Obs.: Este fichamento foi produzido com o objetivo de condensar a discussão do grupo acerca do capítulo do livro. Desdobra-se, em parte, como um comentário do texto original, sendo, porém, predominantemente um resumo. Sua leitura pode auxiliar na identificação das passagens mais importantes do capítulo o que a torna interessante como introdução ou revisão do texto original, cuja leitura é altamente recomendável.
Trabalho e Gênese do Ser Social
Este capítulo busca o estudo de como o trabalho funda o ser social dando origem a um complexo de complexos cuja essência o distingue do complexo natural. Para tal, torna-se necessário o estudo do trabalho em articulação com a totalidade. Isto significa dizer, estudar a categoria fundante do ser social, o trabalho, o ato teleologicamente posto com vistas a transformar determinado setor da natureza, em seus nexos externos, em sua articulação universal.
A singularidade da prévia-ideação pode existir, apenas, permeada por elementos universais, genéricos. Toda resposta a uma situação concreta deve incorporar elementos sócio-genéricos para ser minimamente plausível. Leva em conta as determinações do real. A prévia ideação existe frente a uma situação concreta. Toda situação social concreta possui elementos genéricos. Por isto mesmo, toda prévia-ideação, que visa a responder a demanda posta pelo movimento concreto da realidade, é um momento singular, porém possui elementos genéricos. Existe como resposta a uma situação social genérica, permeada por elementos universais.
A prévia-ideação, em sua singularidade, é permeada, ainda, por outros elementos genéricos: ela não apenas incorpora o desenvolvimento sócio-genérico já alcançado pela humanidade, como também generaliza a situação presente ao confronta-la com o passado e o futuro. A prévia-ideação e a alienação/objetivação não podem existir fora da história, para elas é necessário o processo de acumulação, sempre social, dos homens. É por isto que, mesmo em seu momento mais singular, a categoria do trabalho já opera um processo de generalização. Primeiro, ao generalizar em pergunta a situação concreta. Segundo, ao construir, com base no confronto entre o passado e o futuro, uma resposta alternativa.
Novos contornos tomam forma quando chega-se ao processo de alienação/objetivação. Todo objeto socialmente construído é imediatamente inserido em uma malha de relações e conexões existentes, e que, de alguma forma, ele alterou. Ao alterar o existente, ainda que de maneira ínfima, a história do objeto ganha uma dimensão genérica. Faz parte, agora, de uma totalidade e dela sofre influências, da mesma forma que, dialeticamente, exerce uma influência não menos concreta em relação à totalidade. Assim, não apenas a prévia-ideação, mas também a objetivação opera um processo de generalização. A prévia-ideação, porém, ira generalizar de forma ideal, enquanto a generalização da objetivação será objetiva. De modo análogo à inextrincável articulação entre prévia-ideação e objetivação, a generalização ideal é ineliminavelmente conexa à generalização objetiva.
Segundo Lukács, é esta dimensão genérica, contida na categoria do trabalho, que o torna capaz de fundar a distinção ontológica entre a esfera natural e a esfera social. O ser social caracteriza-se pela capacidade da construção do novo. O momento de generalização do trabalho possibilita a reprodução do socialmente novo, humanamente determinado. O ato humano constrói, de fato, novos objetos e funda novas relações sociais. É esta propriedade de construir o ontologicamente novo que destaca os homens da esfera natural, conferindo-lhes uma essência social, uma essência humana, portanto. E toda esta processualidade de construção de uma realidade cada vez mais humana e menos natural tem sua gênese na capacidade generalizante da categoria do trabalho.
O impulso generalizante da categoria do trabalho é o que vem a fundar o devir humano dos homens. Desta forma, a história da humanidade, que se inicia em pequenas tribos, evolui para formações sociais cada vez mais complexas e abrangentes. O desdobramento desta sociabilidade, desta realidade cada vez mais humana, que afasta as barreiras naturais, nos traz, nos dias de hoje, a uma integração em nível mundial da humanidade, com tal intensidade e tal freqüência que a existência concreta de cada indivíduo não se desliga, nem pode se dissociar, da trajetória histórica de todo o gênero humano. Durante o desenvolvimento do processo de sociabilização é cada vez mais evidente que, nem na sua imediaticidade, a esfera social confunde-se com a esfera natural. Além disto, a vida de cada ser humano é extremamente articulada com a vida do gênero.
As consciências dos indivíduos são mediações inelimináveis à esta produção e reprodução dessas relações. Por esta razão, essas consciências individuais evoluem, reflexivamente à evolução histórica do gênero. O desenvolvimento do gênero não se pode dar sem a evolução das consciências. O gênero humano, portanto, ao se desenvolver, desenvolve, também, sua consciência, o seu ser-para-si. Esta evolução genérica pode existir apenas graças à consciência. Sem a acumulação deste desenvolvimento pela consciência, esse desenvolvimento genérico não poderia existir. A generalidade humana será, portanto, a forma concreta, historicamente determinada, da universalidade humana. O devir humano dos homens é o processo histórico de sua construção. É desta maneira que o devir humano dos homens nada mais é o que o processo de construção, historicamente determinado, de um gênero humano cada vez mais socialmente articulado e portador de uma consciência crescentemente genérica. E o impulso detonador deste processo é a tendência à generalização inerente ao trabalho. Por isso o trabalho é a categoria fundante do ser social.

O Complexo de Complexos:
Para Lukács, o ser se configura na forma de um complexo de complexos. Os distintos processos de cada uma das esferas ontológicas se articulam necessariamente. Articulam-se assim, como complexos parciais de um complexo maior, que é o próprio ser em sua máxima universalidade. A totalidade do ser se manifesta pelas inelimináveis articulações entre as esferas ontológicas. O universo, o ser em sua máxima universalidade, é, portanto, uma totalidade constituída por diversos processos articulados entre si.
Esta articulação primária, apesar de ineliminável, não contradiz, porém, a relativa autonomia de cada esfera ontológica, seja entre elas mesmas, seja entre cada uma delas e o ser em geral. O desenvolvimento de cada uma das esferas ontológicas possui sua processualidade própria, dependente das esferas inferiores, porém relativamente autônoma em relação a estas. Por sua vez este desenvolvimento interno tem reflexos sobre o ser em geral. De forma análoga, existem articulações como estas no interior de cada esfera ontológica. Detendo-nos ao ser social concluiremos que com o primeiro ato de trabalho constitui-se o ser social com dois traços ontologicamente fundamentais: ele é unitário e internamente contraditório.
O primeiro ato de trabalho carrega em seu interior inúmeras contradições, tais como: meios e finalidade posta, indivíduo e totalidade, intentio recta e intentio obliqua, consciência e objeto, etc. Ainda assim, os traços de homogeneidade eram ainda muito grandes neste momento. O estudo do complexo de complexos nos permite investigar como o desenvolvimento deu origem a formações sociais nas quais as diferenças, os momentos de não-identidade, ganham em intensidade sem pôr em risco a unitariedade do mundo dos homens. As próprias individualidades se diferenciam cada vez mais. Este processo de diferenciação dos complexos, das formações sociais, e das individualidades não é apenas resultado do devir humano dos homens, mas é também necessário à sua continuidade. Sem este processo não seria possível dar respostas às novas necessidades postas pelo desenvolvimento humano. O momento predominante nesse processo de diferenciação é o desenvolvimento da sociabilidade. O desenvolvimento social global é que colocará em questão novas necessidades e um novo horizonte de respostas cabíveis. O devir humano dos homens funda e exige uma constante diferenciação de tarefas cotidianas e, consequentemente, das individualidades e dos complexos parciais. O processo de diferenciação é uma resposta aos novos desafios postos pelo próprio desenvolvimento. Assim, o fundamento da diferenciação é, em-si, uma necessidade unitária, a reprodução da vida humana tornada concretamente social.
Não há que se pensar, portanto, em uma sociedade fragmentada, mas sim, em um mundo humano diferenciado, complexo e mediatamente articulado. A esta forma genérica-abstrata pela qual a unitariedade do ser social se desdobra por meio da crescente heterogeneidade dos seus elementos constitutivos, após Hegel e Marx, Lukács denomina de identidade da identidade e da não-identidade.
O mesmo se pode dizer das mesmas esferas ontológicas e do ser em geral. A explicitação de distintas esferas não rompe com a unitariedade última do universo. Assim, tanto o ser em geral, quanto cada uma das esferas, são processualidades cujo desenvolvimento exibe a forma de complexo de complexos. Para Lukács, o que distingue o complexo de complexos social da natureza é o seu elemento primário: o trabalho. Tal ato remete o ser social à criação de necessidades e de respostas a elas, que vão para muito além da esfera do trabalho enquanto tal. Isto permite e requer que o ser social desenvolva uma consciência de si próprio que, com o desenvolvimento da sociabilidade, exerce um papel cada vez mais notável no seu desenvolvimento. A humanidade é, assim, um complexo de complexos cuja evolução é determinada pela consciência que possui de si própria. Desta forma, a esfera social é mais que uma mera totalidade, é uma universalidade potencialmente capaz de dirigir sua história conscientemente.
O primeiro ponto para compreender, portanto, o desenvolvimento dos complexos parciais é o momento predominante da esfera ontológica. A partir daí é necessário desvendar quais mediações pelas quais o momento predominante exerce influência no desenvolvimento dos complexos parciais. Lukács, a partir do estudo da fala e do direito, assinala que, em que pese a particularidade de cada complexo e, portanto, a forma particular com que cada um deles reage às determinações do momento predominante, a mediação que se interpõe entre o momento predominante e os complexos parciais é a totalidade social.

A fala:
A fala é um complexo que surge diretamente relacionado à intentio recta. A necessidade em se apropriar das determinações do real para poder operar posições teleológicas com cada vez maior probabilidade de sucesso, aliada à necessidade de generalização subjetiva e objetiva dos resultados concretos da práxis, está na base do complexo social da fala. Todo o processo de prévia-ideação, e sua conseqüente objetivação, só pode ocorrer tendo por médium a fala. E esta importância não pára de crescer graças ao desenvolvimento da sociabilidade e da diferenciação entre posições teleológicas primárias e secundárias.
Dar nomes é um fenômeno espontâneo, porém complexo. Implica universalizar a singularidade nomeada. Cria-se, na subjetividade, uma categoria universal. Esta categoria universal não é o real, é uma categoria teórica criada pela subjetividade, ontologicamente distinta da realidade. A categoria teórica, no entanto, pode cumprir sua função social na medida em que reflete as determinações do realmente existente. Dar nomes, desse modo, é uma operação extremamente complexa. Desdobra-se no interior da relação teleologia/causalidade, envolve a distância e a articulação entre sujeito e objeto que se desdobra no processo de objetivação/alienação, relaciona de modo reflexo a categoria teórica e as determinações categoriais do ser-precisamente-assim existente, conecta dialeticamente a universalidade do nome e a particularidade do objeto concreto nomeado.
A fala é um complexo de desenvolvimento predominantemente espontâneo. Isto não retira a importância do papel que jogam os indivíduos em sua evolução. Pelo contrário, são os atos teleologicamente postos pelos indivíduos que impulsionarão a evolução do complexo. A incorporação das descobertas dos indivíduos ao patrimônio cultural da sociedade é feita de forma espontânea, casual. Isto permite compreender como, para Lukács, o acaso é momento integrante do fluxo da práxis social. Espontaneidade e necessidade são momentos reflexivamente determinantes em toda a processualidade social, não havendo qualquer contraposição mecânica, excludente, entre estes dois momentos igualmente reais, ainda que opostos, da processualidade concreta. O médium desta síntese entre acaso e necessidade é a práxis social cotidiana.
Esta determinação reflexiva entre espontaneidade e causalidade é o fundamento ontológico para que a fala exiba uma complexa e articulada legalidade própria. Assim, toda língua possui regras que determinam sua forma e sinalizam sua evolução. O desenvolvimento do complexo da fala parte sempre do estágio de desenvolvimento por ela já alcançado. Por isto, toda vez que a evolução da sociabilidade exigir uma evolução da fala esta resposta será dada dentro de uma forma determinada, com maior ou menor medida, pela legalidade já existente. O desenvolvimento da sociabilidade provoca respostas concretas dos complexos parciais que respeita às suas especificidades, o que revela sua autonomia relativa frente ao movimento histórico da formação social no ser todo.
O desenvolvimento global da formação social coloca novas demandas aos complexos parciais. Reagindo às demandas eles evoluem dentro de suas legalidades específicas. Quanto mais complexa e desenvolvida a formação social, mais complexos e articulados os complexos sociais parciais.
Isso leva a um paradoxo lógico que só pode ser resolvido ontologicamente. O desenvolvimento da sociabilidade leva a complexos cada vez mais autônomos graças à maior heterogeneidade das repostas demandadas pelo fluxo da práxis social. Ao mesmo tempo, quanto mais complexo o ser social, mais ele se unifica objetiva e subjetivamente enquanto gênero humano socialmente construído, enquanto generalidade humana. Quanto mais heterogênea a realidade social, mais articuladas são suas partes à totalidade.

O Direito:
O direito não se funda em necessidades universais, como a fala, mas em necessidades com base na sociedade de classes. O direito, para Lukács, surge a partir da exploração do homem pelo homem, momento em que surgem as classes sociais. A partir do surgimento de classes os conflitos tornam-se antagônicos. Por isso a necessidade de uma regulamentação jurídica do controle social, para que os conflitos não implodam a sociedade. Desta maneira, o direito é um elemento conservador. Ele existe para manter a legalidade atual da formação social, qual seja, a exploração do homem pelo homem.
Os conflitos referidos tornam-se complexos e intensificados nas sociedades de classes. Daí a necessidade do direito e de seus indivíduos especializados, frutos da divisão social do trabalho, que criam, mantêm, desenvolvem este órgão a favor das classes dominantes. Diferentemente da fala, o direito não é, portanto, universal. Não é universal no tempo, nem é universal por não ser uma exigência ineliminável de todas as atividades sociais.
Para Lukács, uma sociedade sem classes não seria regulada por um instrumento de manutenção como o direito, que procura perpetuar a exploração do homem pelo homem. A regulamentação dos conflitos sociais seria qualitativamente superior administrando-se as coisas e não os homens.
Como todos os complexos sociais o direito é contraditório. Sua contradição está no fato de toda a regulamentação jurídica ter de, abstratamente, generalizar os conflitos em leis universais. Ele almeja o impossível: construir uma ordem jurídica que torne iguais casos concretamente distintos. A lei é, por isso, abstrata e está sempre em contradição com o caso particular. Daí que surgem, por exemplo, as “atenuantes jurídicas” na tentativa de restringir a universalidade da lei. Isto porque a lei não pode cancelar a diversidade do real. Segundo Lukács, essa é a base ontológica da contraditoriedade do direito.
O direito também exibe autonomia relativa frente ao desenvolvimento social global. Seu desenvolvimento só pode se dar como continuidade ou ruptura do seu estágio anterior. Seu desenvolvimento obedece, portanto, sua legalidade específica e não pode se dar sem a evolução desta própria. O momento predominante para o desenvolvimento deste complexo é, também, o devir humano dos homens. O desenvolvimento social global funda as novas demandas para as quais é fundado e desenvolvido o complexo do direito. É a totalidade que coloca as questões e delineia o horizonte de possíveis respostas a elas. Este horizonte é social e, a todo momento, é delineado e transformado pela práxis.

O estudo da fala e do direito permite que se conclua que a mediação entre o trabalho, que é a categoria fundante do ser social, e os complexos parciais é a totalidade social. O devir humano dos homens é a processualidade que explicita a generalidade humana, trazendo novos desafios e necessidades e delineando suas possíveis respostas, elevando a humanidade a patamares superiores. Portanto é o movimento da totalidade social o momento predominante do desenvolvimento dos complexos sociais.
No entanto, se a totalidade social funda os complexos sociais, é o trabalho que funda a totalidade social. A evolução do trabalho, da troca orgânica homem natureza, portanto, é o fundamento e o que dá sentido ao desenvolvimento de cada complexo particular. Este fundamento, porém, dá-se de forma bastante mediada através da totalidade social, mesmo porque, para Lukács, a práxis humana não se resume à esfera do trabalho. A totalidade social é, desta maneira, a forma historicamente concreta pela qual o trabalho opera enquanto momento predominante da esfera ontológica social.
Lukács, enfim, aponta alguns traços universais dos complexos parciais: são internamente contraditórios, possuem legalidades específicas e relativa autonomia frente à totalidade social, e a totalidade social é o momento predominante na evolução de cada complexo na medida em que media a relação entre eles e o trabalho. Desdobram-se dois níveis de determinação: no primeiro nível o trabalho atua como categoria fundante do devir humano dos homens, o segundo nível, diferente do primeiro, que é predominantemente genérico, é fundado pela totalidade social jogando papel determinante nas formas concretas do devir humano dos homens.
O trabalho é o momento predominante do devir humano dos homens, no entanto, o desenvolvimento da sociedade é determinado, também, pelas particularidades da sociedade. Portanto, se o trabalho é a categoria fundante da reprodução social, a reprodução é o conjunto de mediações que exerce o momento predominante no desenvolvimento historicamente determinado de cada formação social. Ou seja, o trabalho funda o ser social, mas a totalidade social não é redutível a ele.